Pandemia
De repente, paúra. E mais de um milhão de caminhos talhados sem avisos. Mediastinos exaustos por um combate desleal.
Espaço. Vazio. Isolado. E tanta falta ao redor de um milhão de copos cheios de uma mágoa sem precedentes, de uma luta sem armas prontas. Apenas de aprendizados, sem direito a rascunhar o próximo minuto. O assunto de todos os jornais, os ais, os jamais que nunca nos contaram. O Caos. A pausa no caos — uma paulada!
São destes rastros afoitos por um sopro de ar que falo, das dispneias atropelando os sonhos vitais e não raro, recém nascidos de outros tantos adormecidos — estes, resumidos em lágrimas de midazolan.
De repente, aplausos. Um heroísmo iminente por aqueles que nunca se fizeram (des)ver, que rasgaram os próprios limites em busca de valor. E o amor? incubando nas estufas dos apartamentos, na jaulas das janelas abertas por aquele mísero e vital inspirar — Inspir.a.ção.
E nunca, nunca um sopro de ar fez tanto levitar memórias e arrependimentos percorrendo o mundo, sem muito dizer, porque dormiam. Nunca no mundo um toque de celular aproximou uma vida da outra, ainda que morta, ainda que torta, ou paliativa. Toques barrados e, retocando diante das vidraças, todos os rostos estampados de gentileza, ainda que tampados pelo medo, pelo desespero de não haver o próprio suspiro, o próximo abrigo, o próximo amigo. De não haver o próximo. De não ser permitida a proximidade romper uma distância de centímetros e, enquanto isso abaixo dos olhos, aquela linha tênue de desalento, o lamento em via de linha d'água, desabar. Apenas carcaças e muito coração abatido, acenos e lenços manchados de saudade, de ansiedade, de nada. Nem de não saber.
Toda janela se tornou um mundo à parte e uma história particular... um particular contado por todo mundo. E não é por tudo que se repara o breu. É que, apesar de nós, o que é seu, é seu, também. Aconteceu que nesse tempo, meus olhos se fecharam um punhado de vezes, sem acontecer por fora, o que por dentro deslumbrou toda a sua auto gestação. O seu auto pertencimento de algo acontecido muito antes dessa 'euforia' toda desolada.
E te garanto: o 'vir à tona' não é só meu, é de todo mundo...
[só pra contrariar.]
E quando tudo se igualar no universo, se tornar neutro e em ponto zero, não serão as guerras biológicas o centro do mundo, mas as guerras mentais, guerras emocionais e distorcidas serão as curadas e as que curarão. Serão estas as batalhas apuradas longe de uma maca hospitalar. Porque o nosso corpo é lar e a doença é um ente que vive, mas também convive com as nossas escolhas. E o equilíbrio não é fátuo e de fato, o universo se autorregula.
Que fronteiras mais se não as nossas teremos que romper?
Não são as divisas dos Estados, mas nosso estado de ser, de estar e querer. Nossas intenções de pertencimento, de aperfeiçoamento são muito mais abrangentes e carregam sim, tantas vidas com elas. Quais as nossas intenções? Qual foi a lição que a gente não entendeu? Em qual parte a gente não se doou, a gente só se doeu?
Nossas cobranças milenares se contaminaram com valores apodrecidos à beira de um leito hoje, amanhã, à beira-rio. E se sorrio com meu respirar novo, acredito e faço acreditar que as nossas histórias são lendas, lendas daquelas que se vertem longas, por todos os dedos, enquanto se esfregam com água e sabão para se descontaminarem do peso de tudo ter que curar. Há de se entregar o verbo com a melhor terapêutica porque o verbo, é apenas uma parte de toda mudança. A voz inspira os que não podem falar, os que não podem se desvencilhar de uma parte chamada si mesmo. E nós, ficamos a esmo daqueles que deveriam nos acompanhar.
Eu pouco sei e digo mais: de nada adianta todo acontecimento se nada se reter. É preciso o zelo acontecer porque, daqui em diante, meu bem, a gente vai precisar ir muito mais além e significar muito mais que, parafraseando Ane Wash: respirar, respirar, respirar... até expirar!
│Samara Bassi│
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* escrito em 26 de novembro de 2020
* publicado originalmente em 'Quintal de Om'
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